Resumo Há nas ciências sociais um debate sobre as técnicas e atuações no campo cirúrgico, a respeito do caráter de sua eficácia. A literatura é dividida em diferentes posturas que, em contraste, destacam o aspecto ritualístico das técnicas e procedimentos (Katz, 1981; Rawlings, 1989; Hirschauer, 1991) ou a ênfase na eficácia pragmática, no caráter puramente antisséptico dos procedimentos de esterilização (Collins, 1994). Na pesquisa etnográfica realizada no âmbito da produção de tecnologias cardíacas observei que essas esferas estão entrelaçadas. Além disso, é necessário considerar que a formação do campo, procedimento que será explorado aqui, bem como os demais procedimentos de higiene não são apenas rituais para manter afastados os micro-organismos, mas também fazem parte do condicionamento do “corpo do cirurgião”. Cirurgias são procedimentos arriscados, que demandam o desenvolvimento de técnicas para evitar a contaminação por agentes microscópicos, mas também de envolvimento improdutivo. A ameaça de envolvimento indesejado, demasiado, fora de medida, prenuncia o desenvolvimento de habilidades que permitem instituir uma “boa participação”. A etnografia também permitiu iluminar, que em contraste com as cirurgias performadas em humanos nos centros cirúrgicos, os procedimentos em animais realizados no âmbito dos testes in vivo evidenciam que o processo de “despersonalização”, ou seja, o apagamento do sujeito por meio do campo cirúrgico, na cirurgia experimental tem o efeito de naturalizar os animais não-humanos, instituindo-os como substitutos dos humanos, o que demanda um jogo de aproximação e manutenção da diferença. Em linhas gerais, o intuito é descrever e analisar os aspectos técnicos-ritualísticos que compõem as intervenções cardiológicas e fundamentam a instituição do campo cirúrgico, buscando diluir a dicotomia instituída nas ciências sociais entre um polo técnico-funcional e outro ritual-simbólico.
Abstract There is a debate in the social sciences about the character of the effectiveness of techniques and performances in the surgical field. The literature is divided into different postures, which highlight the ritualistic aspects of techniques and procedures (Katz, 1981; Rawlings, 1989; Hirschauer, 1991) or emphasize their pragmatic efficacy and the purely antiseptic character of sterilization procedures (Collins, 1994). During ethnographic research conducted in the field of cardiac technology production, I observed that these spheres are, in fact, intertwined. Additionally, I believe that it is necessary to consider that the formation of the surgical field (a procedure that will be explored in the following article), as well as the employment of other hygienic procedures are not simply rituals to keep microorganisms away, but are also part of the conditioning of the “surgeon's body”. Surgeries are risky procedures that require the development of techniques in order to avoid contamination with both microscopic agents and unproductive involvement. The threat of unwanted involvement implies the development of skills that allow for “good participation”. In my ethnographic research, in contrast to the surgeries performed on humans in the operating rooms, the procedures performed on animals show that the process of “depersonalization” (that is, the subject's erasure through the construction of the surgical field) in experimental surgery has the effect of naturalizing non-human animals, instituting them as substitutes for humans. This requires a delicate game of approximation and distancing on the part of the surgeon and the medical team. In general, my aim here is to describe and analyze the technical-ritualistic aspects that are part of cardiac interventions and which underlie the establishment of the surgical field, seeking to dilute the dichotomy established in the social sciences between a technical-functional pole and a ritual-symbolic one.