Resumo Neste artigo, argumentamos que para compreender o “ataque” dirigido à antropologia realizado na esfera pública no Brasil, desde o início da segunda década do século XXI, é necessário olhar para o modo como o conhecimento antropológico se disciplinarizou e se institucionalizou no médio e longo prazo. Referimo-nos, em particular, à relação entre o que se constituiu como um “campo da antropologia” e questões relacionadas com a esfera pública. É preciso considerar, também, a configuração com outros saberes institucionalizados ao longo do período que vai do final do século XIX até a atualidade, com descontinuidades, mas também com algumas continuidades importantes. Procuramos mostrar que a antropologia inicialmente empreendida no Brasil estava basicamente comprometida com a promoção dos interesses das elites políticas de base agrária, situação que se prolongou da virada do século XIX para o século XX e nas primeiras décadas do século XX, não apenas no nível da construção da nação, mas também na formação do Estado. No entanto, desde a década de 1950, e especialmente após a criação dos novos cursos de pós-graduação no final da década de 1960 e início da década de 1970, os antropólogos desenvolveram conhecimentos que os levaram a assumir um compromisso ético e moral com as comunidades com as quais trabalhavam, combinado com uma crítica ao desenvolvimentismo do regime autoritário civil-militar. Num terceiro momento, que vai desde o processo constituinte até a atualidade, uma parcela dos antropólogos brasileiros passou a atuar diretamente no reconhecimento de direitos constitucionalmente atribuídos a coletividades diferenciadas, gerando uma crescente e progressiva zona de atrito com os setores hegemônicos no âmbito econômico-político.
Abstract In this article we argue that, in order to understand the “attack” made on anthropology in Brazil, undertaken in the public sphere since the beginning of the second decade of the twenty-first century, we need to look at how anthropological knowledge has become disciplined and institutionalized in the medium to long term. We refer, in particular, to the relationship between what has been constituted as a “field of anthropology” and issues related to the public sphere. It is also necessary to consider the configuration with other institutionalized knowledge throughout the period spanning from the end of the nineteenth century to the present, with discontinuities but also with some important continuities. We look to show that the anthropology initially undertaken in Brazil was basically committed to furthering the interests of the agrarian-based political elites, a situation that continued from the turn of the nineteenth century to the twentieth century and into the first decades of the twenty-first, not only at the level of nation building, but also in the formation of the State. However, since the 1950s, and especially following creation of the new postgraduate courses in the late 1960s and early 1970s, anthropologists developed knowledge that led them to make an ethical and moral commitment to the communities with which they worked, combined with a critique of the military regime’s developmentalism and dictatorial authoritarianism. During a third moment ranging from the constituent process to the present, a portion of Brazilian anthropologists began to work directly in the recognition of rights constitutionally assigned to differentiated collectivities, generating a growing and progressive zone of friction with the hegemonic sectors at the economic-political level.