Neste texto propomos uma interpretação crítica da dicotomia histórica entre público e privado como dinâmica fundamental da modernidade. A partir de uma perspectiva de género, discutimos as fronteiras construídas entre espaço coletivo de cidadania e de sociabilidade e espaço individual de intimidade e desigualdade. Argumentamos a favor de uma relação de cumplicidade, ainda que tensa, entre as duas esferas, observando que a vida privada foi, em grande medida, moldada pelas mudanças operadas na vida pública. Recorrendo a diferentes definições de "público", notamos que, à medida que as sociabilidades tradicionais, essencialmente masculinas, estudadas entre outros por Ariès ou Sennett, sofriam uma erosão, crescia o sentimento de intimidade, aumentando igualmente a inclusão do privado no público através do alargamento da cidadania, em consequência das lutas travadas na esfera pública por vários movimentos de emancipação, como o operário ou o feminista. À medida que a pessoa era retirada da comunidade, do clã, do grupo de parentesco, em que eram "naturais" as desigualdades, no sentido aristotélico do termo, ia-se reencontrando progressivamente como indivíduo portador de cidadania. Se o espaço privado se tornou central na definição de uma identidade, ele é também crescentemente atravessado por mecanismos públicos de regulação. Nesse sentido, o movimento de ascensão do privado, que nas últimas décadas tem ocupado espaço de debate, deve ser cuidadosamente reinterpretado.
In this text, we put forward a critical interpretation of the historic dichotomy between 'private' and 'public' as a fundamental dynamic of modernity. From the perspective of gender we discuss the boundaries that have been constructed between the collective space of citizenship and sociability and the individual space of intimacy and inequality. We make a case for a relationship of complicity, albeit tense, between the two spheres, observing that private life has been extensively moulded by the changes that have taken place in public life. Making use of the different definitions of 'public', we note that as the traditional, essentially masculine, sociabilities studied by Ariès or Sennett, among others, were eroded, the sense of intimacy increased. There was also greater inclusion of the private in the public through the expansion of citizenship, following the battles fought in the public sphere by various emancipation movements, e.g. those of the workers or the feminists. As individuals were taken out of the community, clan or family group, where the inequalities were "natural", in the Aristotelian sense of the term, they progressively rediscovered themselves as individuals endowed with citizenship. If the private space has become of central importance in the definition of an identity, it is also increasingly crossed by public, regulatory mechanisms. For this reason, the ascent of the private, which has been a topic of debate in recent decades, should be carefully reinterpreted.